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Fundo difuso

Em nossa série de artigos sobre a Teoria do Big Bang, discorremos sobre a radiação cósmica de fundo em micro-ondas (CMB), que é um vestígio do evento que deu origem ao Universo.

Esta matéria é sobre outra coisa. Se tivéssemos visão de raios X e raios gama, enxergaríamos um brilho tênue em vez de escuridão entre as estrelas: o fundo difuso de alta energia. Assim como a CMB, ele preenche toda a extensão do céu, fazendo fundo para as estrelas.

Como você já deve ter deduzido, o fundo difuso é um bombardeio de raios X e raios gama provenientes do espaço. Para descobrir o que causa essa radiação, os astrônomos fazem observações em separado dessas duas faixas do espectro eletromagnético, que correspondem a diferentes níveis de energia.


I - Fundo difuso em raios X

Em raios X de baixa energia (∼ 1/4 keV*), o céu brilha em radiações provenientes de gases quentes que preenchem uma parte do espaço interestelar.

Eles apresentam uma temperatura em torno de 1 milhão de graus e são aquecidos de duas formas: por gases quentes remanescentes de supernovas e por ventos quentes de estrelas massivas jovens, que esquentam a matéria em seu entorno, formando bolhas de ventos estelares.

*Medindo a radiação eletromagnética

Pode-se expressar a radiação eletromagnética em termos de energia, comprimento de onda ou frequência. Esta última é medida em ciclos por segundo, ou Hertz; o comprimento de onda, em metros (m), e energia em elétron-volts (eV) ou joules (J).

Em nosso texto central, a notação keV é a unidade elétron-volt multiplicada por 1.000. Ex.: 1,4 keV = 1.400 eV.

Clique aqui para saber mais sobre a radiação eletromagnética.


Já em raios X de alta energia (∼ 1/2 keV), as fontes do fundo difuso mudam consideravelmente. Embora as emissões de remanescentes de supernova e as bolhas de ventos estelares ainda estejam presentes, elas são menos dominantes do que em baixas energias.

Grande parte da radiação de fundo é isotrópica (isto é, mostra-se a mesma em todas as direções). Os cientistas deduzem que ela vem de fora da Via Láctea, já que, se fosse interna, brilharia mais em algumas regiões do que em outras, devido ao formato da galáxia.

Acima de 1 keV, a maior parte do fundo não é de todo difuso em sua origem, mas provém de objetos extragalácticos muito distantes. Sabe-se disso a partir de observações profundas do fundo difuso em raios X. Em Astronomia, quando se fala em observação profunda, significa que um detector está sendo direcionado para um determinado ponto do espaço por um longo intervalo de tempo.

O uso de observações de campo profundo do satélite ROSAT, acima de 60% do fundo difuso na faixa energética de 1 a 2 keV, tem proporcionado boa resolução de fontes muito distantes e separadas, tipicamente quasares (para saber mais sobre esses objetos, veja nosso artigo sobre galáxias ativas).

Fundo difuso de raios X moles

Os raios X de maior comprimento de onda (menos energia) têm maior difuldade em penetrar nos corpos e são chamados de raios X moles, em contraposição aos raios X duros, que penetram mais facilmente por apresentarem menor comprimento de onda (mais energia).

O fundo difuso de raios X moles (diffuse soft X-ray background ou SXRB) provém de uma combinação de mais de cinco diferentes fontes que emitem raios X na faixa de menor energia, os quais são espalhados por um volume extremamente amplo de espaço.

Sua estrutura, supostamente tridimensional, inclui bolhas tais quais os buracos de uma esponja, ou queijo suiço, que ocasionalmente se interconectam. Essas bolhas estão contidas no disco da galáxia, podendo variar de tamanho em uma faixa de menos de 50 a mais do que 200 parsecs de diâmetro (1 parsec ≈ 3,26 anos-luz).

A natureza do SXRB varia ao longo de seu espectro energético. Nas mais baixas energias, quase todo o SXRB origina-se de emissões termais de matéria quente (por exemplo, carbono, nitrogênio, oxigênio, neon, magnésio, silício e ferro).

Em energias mais altas, qualquer parte do meio interestelar (ISM) que seja mais quente que 106 kelvin tem que ter origem a partir de alguns processos extremos tais como supernovas e os ventos estelares de estrelas jovens.

O estudo da faixa de 1/4 keV do SXRB - que corresponde a fótons com energia de 0,1 a 0,3 keV - teve início nos idos dos anos 1960, com o uso de foguetes-sondas. Este método foi usado porque raios X nessas mais baixas energias não se aproximam muito de nós. Então, assim como em outros estudos astronômicos, as observações tiveram que ser feitas em altitudes maiores que 200 km.

Nessas primeiras sondagens, o fundo de 1/4 keV evidenciou uma superfície brilhante intensa e que variava de acordo com a direção do céu, dependendo da fonte que a originava. Com a resolução angular um pouco fraca, a característica mais óbvia que se obteve foi uma tendência geral para maiores intensidades em altas latitudes, isto é, acima e abaixo da galáxia, e não no plano galáctico.

Ficou claro que o SXRB tem sua origem fora da Via Láctea, e que a variação de intensidade deve-se à absorção pelo meio interestelar (ISM), no disco galáctico. O fluxo oriundo do plano galáctico foi atribuído a um componente adicional, distinto do fundo cósmico, o qual não pôde ser identificado.

Entretanto, com observações independentes adicionais, o meio interestelar local tornou-se um candidato quando ficou aparente que o fluxo observado no plano galáctico, muito provavelmente, é de origem cósmica (de fora do Sistema Solar).

Esta e outras inconsistências do modelo de absorção foram explicadas pela existência de um componente local inabsorvível. A partir de então, as discussões sobre a origem do SXRB tornaram-se fortemente conectadas a modelos do ISM local.

Nos anos 1970 e 1980, muitos progressos foram feitos em relação à qualidade dos dados, com incrementos na cobertura celeste alcançada, bem como na resolução espectral angular dos instrumentos usados nas observações.

Desde então, grupos diferentes apresentaram dados coletados a partir de uma variedade de métodos, todos consistentes uns com os outros. A FIGURA 1 exibe três mapas de céu inteiro, obtidos em pesquisas conduzidas pela Universidade de Wisconsin, pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts e pela Universidade Estadual da Pensilvânia.


Fundo difuso em raios X
FIGURA 1: Mapas de céu inteiro do fundo difuso de raios X moles.

Em meados dos anos 1990, a missão ROSAT contribuiu com uma quarta pesquisa independente, com alvo na banda de 1/4 keV. A FIGURA 2 mostra esse mapa:


Fundo difuso em raios X
FIGURA 2: Mapa do fundo difuso em raios X na faixa de 1/4 keV, obtido por sondadem de céu inteiro do ROSAT, em projeção de igual área de Aitoff-Hammer, com o centro galáctico no meio. [Créditos: Instituto Max Planck de Física Extraterrestre, Snowden et al.1995, ApJ, 454, 643]

Compare com a FIGURA 3, que exibe um mapa baseado nas emissões galácticas de hidrogênio:


Fundo difuso em raios X
FIGURA 3: Mapa da coluna de densidade do hidrogênio neutro galáctico. Observe a correlação geral negativa com o fundo difuso em raios X a 1/4 keV da FIGURA 2.

A comparação entre as figuras 2 e 3 evidencia uma correlação negativa: enquanto que, na FIGURA 2, há muito espaço vazio no plano da galáxia, na FIGURA 3 esse plano é abundante em hidrogênio.

A FIGURA 4 mostra o mapa do ROSAT, na banda de 3/4 keV. Exceto por algumas poucas características galácticas peculiares, a estrutura em 3/4 keV é bem diferente do que em 1/4 keV.

A característica mais marcante é o Loop I, um anel de poderosa emissão energética no centro da galáxia. Deduz-se haver uma remanescente de supernova/bolha de vento estelar a uma distância de 150 parsecs, com um raio de ∼ 100 parsecs:


Fundo difuso em raios X
FIGURA 4: Mapa do fundo difuso em raios X moles, obtido pelo ROSAT em banda energética de 3/4 keV. Neste nível, o céu é dominado por um fundo extragaláctico relativamente brando e um limitado número de objetos galácticos brilhantes. [Créditos: Instituto Max Planck de Física Extraterrestre, Snowden et al.1995, ApJ, 454, 643]

A FIGURA 5 corresponde a uma imagem em cores falsas do céu em raios X moles, obtida pelo ROSAT, onde as cores indicam a intensidade, a saber: vermelho: 1/4 keV; verde: 3/4 keV; azul: 1,5 keV:


Fundo difuso em raios X
FIGURA 5

De modo geral, dos anos 1960 aos anos 1990, a resolução angular dos observatórios de raios X não foram suficientes para a catalogação completa de fontes em uma dada faixa de visão. Essa resolução foi incrementada com o advento do Chandra e do XMM.

Estrutura e importância

Conforme anteriormente mencionado, pode-se fazer uma analogia entre a estrutura do SXRB e uma esponja natural ou queijo suiço. Os buracos são muito grandes, tendo em vista que o ISM é bastante dinâmico.

supernovas em ação e, quando isso ocorre, uma grande quantidade de energia é liberada, e esta movimenta material, espalhando-o tal como um removedor de gelo empurra a neve ao redor, literalmente "varrendo" cavidades no ISM.

Ocasionalmente, as pilhas de matéria precipitam-se umas sobre as outras, podendo algumas vezes ficarem espumosas. Isto tem início como uma estrutura muito fina e plana, sendo que o hidrogênio que podemos ver está nos braços e uniformemente distribuído.

A uniformidade é quebrada quando supernovas começam a empurrar as coisas ao redor. Cada uma dessas bolhas contém matéria quente e, à medida que o tempo passa, vão ficando maiores e esfriando.

Nosso Sistema Solar encontra-se dentro dos limites de uma bolha, chamada de Bolha Local. Esta estrutura é muito antiga, porém o plasma a milhões de graus demora muito a esfriar, portanto nosso entorno pode manter-se relativamente quente durante vários milhões de anos.

A estrutura pode ser determinada pela observação das distribuições; o conteúdo, pela sondagem do SXRB em comprimentos de onda específicos. A partir do final dos anos 1970 e no decorrer dos anos 1980, realizaram-se muitos trabalhos focados em outros níveis de energia além da porção em raios X do espectro. Esses estudos tiveram um impacto em nosso entendimento do meio interestelar local.

Localmente, foi observada uma carência de material neutro no disco galáctico. Medições na linha de absorção do ISM, ao longo do espectro de estrelas relativamente mais próximas, foram usadas para a demonstração conclusiva de que há uma cavidade local no hidrogênio neutro do disco galáctico nos arredores do Sol, porém não relacionada com nossa estrela.

Os tamanhos desses espaços de pouca densidade em H I variam consideravelmente, inclusive no plano galáctico, na faixa de dezenas a centenas de parsecs. As cavidades revelaram-se regiões complicadas, com um componente de extensão limitada e parcialmente ionizado ao redor do Sol, e significativos comprimentos de trajetória de hidrogênio gasoso ionizado (H II) em pelo menos uma direção.

Além das regiões de gases H II, a cavidade local em H I mostrou-se um lugar lógico para a aposição da matéria quente responsável pelo componente local do SXRB (que é observado no plano galáctico).

Outro caminho para a determinação da localização dos gases emissores de raios X é a observação do sombreamento causado por nuvens de fundo no meio interestelar. Isto é claramente demonstrado pela variação de intensidade dos raios X na direção da Nebulosa do Dragão (FIGURA 6):


Fundo difuso em raios X
FIGURA 6

A imagem da esquerda exibe a intensidade da banda de raios X em 1/4 keV (roxo é fraco, vermelho/branco é forte), e a imagem do IRAS, à direita, mostra a intensidade em 100 micron (uma medida do material do ISM, similar ao H I). A banda de 1/4 keV é claramente sombreada pela Nebulosa do Dragão, indicando que naquela direção há uma emissão extensiva, com origem no lado de fora da nebulosa.

Observações da linha H I do espectro são fundamentais para o entendimento da estrutura do Universo, pois é aí que o hidrogênio neutro ressoa. Quanto maior a força do sinal em comprimentos de onda onde a assinatura do hidrogênio neutro pode ser achada, mais material está disponível ao longo da linha de visão.

Há uma maneira de se medir a quantidade de massa existente e que de fato nos rodeia, além de apenas o que pensamos ver. Isto é crítico, porque o H I ou, mais praticamente, os metais que estão com hidrogênio neutro, absorvem raios X, e são bons na absorção em 1/4 keV.

A variação que vemos não é, necessariamente, relacionada à quantidade de material lá fora que está emitindo a radiação e sim, principalmente, uma combinação de variações na fonte, e do quanto da emissão é absorvida enquanto viaja ao longo de nossa linha de visão.

O H I é importante para o entendimento do fundo em 1/4 keV, porque ele ajuda na compreensão da distribuição em três dimensões do plasma, gases ou o que quer que esteja produzindo os raios X.


II - Fundo difuso em raios gama

Os raios gama correspondem à faixa mais energética do espectro eletromagnético (menor comprimento de onda, maior frequência). Compondo o fundo difuso, são muitas as fontes pontuais dessa radiação, mas uma parte significativa provém de gases da própria Via Láctea.

Esses raios provenientes de gases estiram-se em uma faixa ao longo do céu, abrangendo grande parte do fundo difuso de raios gama. O restante vem do exterior da galáxia: é o brilho tênue do resto do Universo, cobrindo todo o céu além da Via Láctea.


Fundo difuso em raios gama
Mapa celeste em raios gama (neste caso com energia > 100 MeV), baseado em dados obtidos pelo EGRET. À parte das óbvias e brilhantes fontes pontuais, as fortes emissões ao longo do centro provêm da Via Láctea. Além dela, pode ser vista uma emissão extragalática muito tênue (áreas azuis da imagem).

Dentro de nossa galáxia, há, de fato, vários diferentes tipos de radiação gama em fundo difuso, e a imagem acima exibe um desses tipos. As faixas amarela e vermelha ao longo do centro são o brilho de alta energia causado por raios cósmicos interagindo com gases interestelares.

O gás, aquecido pelos raios, emite energia em um nível maior do que 100 MeV. Fenômeno similar verifica-se na galáxia vizinha conhecida como Grande Nuvem de Magalhães.

Outro tipo de emissão difusa em raios gama, no âmbito da Via Láctea, é exibido na imagem abaixo, que mostra a região central da Via Láctea, usando dados do Observatório de Raios Gama Compton:


Fundo difuso em raios gama
Luzes de alumínio radioativo no bojo central da Via Láctea.

Nesta imagem, apenas um tipo de raios gama é exibido: a luz desprendida por uma forma radioativa de alumínio (26Al). Cientistas teorizaram que tal elemento foi criado por novas** ou em estrelas massivas, portanto esperavam encontrar uma grande quantidade em regiões próximas ao centro galáctico (onde haveria a maior concentração de estrelas massivas).


**Novas são explosões que ocorrem no processo de acreção de matéria de uma estrela normal em uma anã branca. Leia mais sobre elas em nosso artigo sobre as variáveis cataclísmicas.


Esperava-se que o 26Al estivesse distribuído suave e simetricamente em cada lado do centro da galáxia, já que é assim que geralmente as estrelas se distribuem. Curiosamente, a radiação detectada pelo COMPTEL apresenta uma estrutura mais complicada. As emissões são muito localizadas (concentradas) e não tão brilhantes na direção do centro galáctico quanto se supunha.

Por fim, Ainda há mais uma fonte de raios gama difusos em nossa galáxia: as violentas interações entre matéria e anti-matéria.

Certos fenômenos galácticos produzem pósitrons, a anti-matéria equivalente aos elétrons. Ao contrário destes, os pósitrons têm carga elétrica positiva. Quando um pósitron encontra-se com um elétron, eles destroem um ao outro de forma muito violenta. Este evento chama-se aniquilação de pares.

A aniquilação pósitron-elétron libera uma erupção de energia em raios gama de exatamente 511 keV, fazendo parte do fundo difuso em raios gama da Via Láctea.

Muitos outros processos, menos violentos, produzem raios gama em níveis específicos de energia. Somados, também contribuem com o fundo difuso galáctico.

A imagem a seguir, por exemplo, mostra uma área da Constelação de Órion onde foram detectados raios gama em uma faixa de energia entre 3 e 7 MeV.


Constelação de Órion
Imagem da região de Órion, capturada pelo COMPTEL.

Assim como os raios gama de 511 keV são indicativos da aniquilação de pares, níveis específicos de radiação exibidos na imagem também representam assinaturas de certos eventos. Neste caso, porém, são coisas mais "mundanas", tais como a presença de carbono e oxigênio nos gases interestelares.

As emissões difusas de raios gama provenientes de fora da galáxia podem ser devidas à combinação de luzes de objetos individuais distantes. Provavelmente, esses objetos são, em sua maioria, galáxias ativas (AGN’s), as quais emitem volumes incomuns de raios X e raios gama. Elas são muito similares aos quasares, que são a principal fonte dos raios X provenientes do exterior da Via Láctea.

Você pode estar se perguntando: para que saber disso tudo? Bem, as observações realizadas até aqui e as futuras, com equipamentos mais aperfeiçoadas, devem prover descobertas relacionadas a uma das mais fundamentais questões astronômicas: como se desenvolveu toda esta matéria em torno de nós?


★ Edição: Mauro Mauler - atualizada em 17/04/2024.

★ Conteúdo parcialmente adaptado de:

NASA's Imagine the Universe



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